Dgnitatis Humanae, um documento católico tradicional

Conteúdo de vídeo: https://youtu.be/2_gzo61Bu8s


Este artigo é um estudo sobre a Dignitatis Humanae, e tem como objetivo mostrar que doutrinas ensinadas na DH (Dgnitatis Humanae) já eram presentes na tradição da Igreja, seja nos Pais da Igreja, nos Papas, ou teológos. Não é a intenção no momento refutar as supostas contradições que vários tradicionalistas alegam entre ela e os documentos do passado, ou mesmo do próprio Concílio (isso será um tema futuro).

O primeiro artigo da DH afirma, entre outras coisas, que:

Em primeiro lugar, pois, afirma o sagrado Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao gênero humano o caminho pelo qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo. Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: «Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, baptizando os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi» (Mt. 28, 19-20). Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar.

O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria forca, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte.

Até então, imagino que isso não vá causar problemas para ninguém, senão para os mais exagerados que buscam questionar os menores detalhes. Prosseguindo:

Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coacção na sociedade civil, em nada afecta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo.

Aqui nós podemos ver 1. A definição de liberdade religiosa segundo o Concílio, sendo ela a liberdade de coação (ou seja, o ser humano é livre para aderir à fé católica sem ser obrigado), doutrina esta que nós podemos reconhecer à luz da tradição:

Pois cuide para que você não dê mais motivos para a acusação de irreligião, tirando a liberdade religiosa e proibindo a livre escolha da divindade, para que eu não mais adore de acordo com minha inclinação, mas seja obrigado a cultuar contra ela. Nem mesmo um ser humano gostaria de receber uma homenagem involuntária

(Tertuliano [século II-III] Apology, Capítulo 24)


No entanto, é um direito humano fundamental, um privilégio da natureza, que cada homem deve cultuar de acordo com suas próprias convicções: a religião de um homem não prejudica nem ajuda outro homem. Certamente não faz parte da religião compelir a religião, à qual o livre-arbítrio, não a força deve nos levar. Você não prestará nenhum serviço real aos seus deuses obrigando-nos ao sacrifícioPois eles não podem desejar oferendas relutantes, a menos que sejam animados por um espírito de discórdia, que é algo totalmente não divino.

(Tertuliano [século II-III] - To Scapula, Capítulo 2)

 

Ninguém é ferido porque Deus está diante dele. Você mantém sua própria opinião. Você não obriga um homem contra sua vontade a adorar o que ele não gosta. Que a mesma liberdade seja dada a você, ó imperador, e que cada um a suporte com paciência. Um espírito arrastado é desagradável para os próprios pagãos, pois todos devem livremente defender e manter a fé e o propósito de sua própria mente.

(Santo Ambrósio de Milão [século IV] - Carta 17, 7)


A segunda (2) coisa que aprendemos por este texto da DH, é que o Concílio não tinha qualquer intenção de romper com a doutrina católica já ensinada no passado, dando especial ênfase no Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Passemos agora para o artigo 2 da DH, que inicia reafirmando a mesma doutrina que ja vimos até aqui, e acrescenta:

e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites.

 Mais uma vez, podemos encontrar na tradição católica a liberdade dos infiéis para cultuar publicamente:

Porque não cremos que alguém tenha a verdadeira fé do cristianismo se sabemos que não é espontaneamente, mas contra sua vontade que vem ao batismo dos cristãos. Ninguém deve retirar à força os bens dos judeus, ou modificar as boas práticas que até então eram suas na região em que habitam. Além disso, que ninguém, de forma alguma venha a incomodá-los com paus ou pedras durante a celebração de suas festas

(Papa Inocêncio III, Constituição Licet Perfidaea Iudeorum)


Sobre os demais ritos dos infiéis, que somente se opõem à fé e não a razão natural, a tese certa é que os infiéis não devem ser obrigados, enquanto sejam súditos, a abandonar, mas que devem ser tolerados pela Igreja. Assim o ensina São Gregório (Epistolae, lib. XIII, epist. 12 (PL. 77, 1267), especialmente dos judeus, quando proíbe que sejam privados de suas sinagogas e manda (Epistolae, lib. XI, epist. 15 (PL. 77, 1131) que lhes permita ter seus cultos. Em outra parte igualmente se disse que lhes deve permitir celebrar suas festas. Por qual razão? Porque estes ritos não são intrinsecamente maus em virtude da lei natural.


(Francisco Suarez - El pensamiento político Hispanoamericano, Selección de Defensio Fidei y otras obras, ano 1966, pág. 401) 


Seguiremos agora com a DH:

[Este Concílio] Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer


Aqui entra então uma questão interpretativa de grande importância: a DH não garante neste ensinamento um suposto direito ao erro, o próprio Catecismo da Igreja Católica indica o contrário:

O direito à liberdade religiosa não é nem a permissão moral de aderir ao erro, nem um suposto direito ao erro, mas um direito natural da pessoa humana à liberdade civil, isto é, à imunidade do coação exterior, dentro dos justos limites, em matéria religiosa, por parte do poder político.

(Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 2108)


É nesse sentido que explica Joseph Ratzinger, a pedido da Congregação para a doutrina da fé:

doutrina da DH não pode ser entendida como uma afirmação de um direito a se propagar o erro: a noção de liberdade religiosa na DH não se refere às relações do homem ou do Estado com a verdade e o bem, mas do homem e do Estado com os outros homens, indicando o que o homem não deve fazer (obrigar em assuntos religiosos).

Como resultado, a liberdade religiosa é um direito negativo. Como toda negação supõe uma afirmação, esse direito negativo supõe um outro direito positivo. No entanto, este direito positivo não é para propagar o erro, mas aquele - que é também um grave dever - voltado à procura da verdade e ao render culto a Deus. Este grave dever é o fundamento do direito da pessoa a um espaço social de atividade autônoma.

(Resposta à dúbia de Marcel Lefebvre, 09 de março de 1987)


Assim sendo, deve-se entender que não é contraditório que alguém que não tenha o direito ao erro não possa ser reprimido por este erro. Doravante, ensina Santo Irineu de Lião:


Não somente nas ações, mas também na fé, o Senhor deixou livre e independente o arbítrio do homem. Ele disse: “Seja-te feito segundo a tua fé”, mostrando que a fé é própria do homem, pois tem o poder de decidir. [...] E todos os textos análogos mostram o homem livre em relação à fé.

(Santo Irineu de Lion - Contra as Heresias, Capítulo 37, art.5)


Prosseguindo com a DH:

Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil.

Acho que depois de tudo que nós vimos até aqui, isso já não deve ser um problema para ninguém. Vimos que os infiéis foram protegidos pelos papas do passado (Inocêncio III e São Gregório Magno, citado por Suarez) e isso de maneira civil. Mas para completar sobre o assunto, podemos citar Pio XII, que diz:

Por outro lado, Deus nem sequer deu à autoridade humana um preceito tão absoluto e universal [de coagir os infiéis], nem no campo da fé nem no da moral. Nem a convicção comum dos homens, nem a consciência cristã, nem as fontes da revelação conhecem tal preceito, nem a prática da Igreja. Para omitir aqui outros textos da Sagrada Escritura que se referem a este tema, Cristo na parábola do joio fez a seguinte advertência: Que o joio cresça no campo do mundo junto com a boa semente por causa do trigo (cf.Mate . 13, 24-30)O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode, portanto, ser uma regra última de ação. Deve subordinar-se a normas superiores e mais gerais, que em algumas circunstâncias permitem, e talvez até o façam aparecer como a melhor opção, não impedir o erro, a fim de promover um bem maior.

(Pio XII - Discurso aos Juristas Católicos Italianos, de 6 de dezembro de 1953, sessão V)


Nos próximos artigos da DH, 3 e 4, é comum que alguns tradicionalistas tentem interpretar um indiferentismo, interpretação essa que na prática isolaria o primeiro artigo. Portanto esta interpretação maldosa nem merece ser levada em consideração. Já basta a palavra de São Paulo VI, que promulgou a DH:

O Concílio, de modo algum, fundamenta este direito [da liberdade religiosa] na ideia de que todas as religiões, e todas as doutrinas, mesmo errôneas, que dizem respeito a este campo, teriam um valor mais ou menos igual

(S.Paulo VI - Discurso de 20, dezembro, 1976)


Outro problema que alguns tradicionalistas sugerem é que a DH abriria espaço para o estado laico. Mas mesmo que isso seja verdade, o estado laico não é um espantalho sólido que a Igreja condenou, e Pio XII explica bem sobre o assunto:

Há, na Itália, os que estão agitados, porque temem que o cristianismo tire de César o que é de César. Como se dar a César o que lhe pertence não fosse uma ordem de Jesus; como se o legítimo e sadio laicismo do Estado não fosse um dos princípios da doutrina católica; como se não fosse tradição da Igreja o esforço contínuo para manter os dois Poderes distintos, mas também, sempre segundo justos princípios

(Pio XII - Discurso de 23 de março de 1958)


O estado laico que a Igreja condenou foi aquele que tem a intenção de excluir ou opor-se a Deus e à religião.


Creio que até aqui, já apresentei fundamentos suficientes da Dignitatis Humanae na tradição da Igreja, por meio de uma sequência nada exaustiva de citações. Futuramente trataremos também das falsas contradições que os tradicionalistas tentam impor à DH com outros documentos. Deus abençoe vocês.






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