Argumentos católicos contra a pena capital
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Pena de morte: por que não há “ruptura”!
A pedido do Papa Francisco, a Congregação para a Doutrina da Fé escreveu, em 1º de agosto de 2018, uma carta aos bispos informando sobre a mudança no n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica (CIC) sobre a pena de morte, tornando-a em todos os casos ilegítima. Essa alteração reflete uma evolução na doutrina da Igreja, considerando documentos magisteriais recentes, a eficácia de meios alternativos para neutralizar criminosos, o desenvolvimento da doutrina jurídica sobre as penas, e a sensibilidade crescente dos cristãos em favor da vida.
No campo doutrinal, a autoridade máxima é a do magistério da Igreja, mesmo não sendo definitivo, e é assistida pelo Espírito Santo (cf. CIC 892). A doutrina autêntica da Igreja sobre a pena de morte se desenvolveu recentemente. Em 1992, o Catecismo da Igreja Católica considerava preferíveis os meios que evitassem a pena de morte, se suficientes (CiC 2267). Em 1995, a encíclica Evangelium vitae (n. 56) ensina que a pena de morte só pode ser infligida em casos de necessidade absoluta, praticamente inexistentes nos dias de hoje. A edição de 1997 do CIC 2267 reproduz esse ensinamento, assim como o Compendium da doutrina social da Igreja de 2005 e o Papa Bento XVI.
Em 1º de agosto de 2018, a Congregação para a Doutrina da Fé, reconhecendo que "no passado, a situação política e social tornava essa pena um instrumento aceitável para a salvaguarda do bem comum", considera documentos magisteriais recentes, a eficácia de meios alternativos para neutralizar criminosos, a evolução da doutrina jurídica sobre o sentido das penas, e o refinamento da sensibilidade dos cristãos a favor da vida. Ela considera o momento adequado para declarar que "a pena de morte é inadmissível, pois atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa" (CIC 2267, redação de 1º de agosto de 2018). Alguns viram nesse desenvolvimento doutrinal uma evolução por contradição.
É necessário, antes de tudo, lembrar que a doutrina da Igreja se desdobra ao longo dos séculos. Em vários pontos, a Igreja, embora iluminada pela lei evangélica, só gradualmente tomou consciência, ao longo dos séculos, de todas as implicações da lei moral natural. Isso pode acontecer de várias formas:
1. Às vezes, a história mostra que uma maneira de agir tem consequências dramáticas e insolúveis. Assim, as guerras religiosas levaram gradualmente à convicção de que a liberdade religiosa é um direito natural.
2. Por um tempo, documentos magisteriais sobre uma questão foram extraviados. Isso ocorreu com a carta em que, em 866, o Papa São Nicolau I condenou a tortura como contrária ao direito natural e divino. Daí as vacilações ao longo de 1100 anos, lamentadas por Pio XII. (cf. Discurso de 3 de outubro de 1953)
3. As implicações da lei divina são descobertas gradualmente através da meditação na Palavra de Deus. Assim, a Igreja lutou contra a escravidão apenas aos poucos - Paulo III, em 2 de junho de 1537, na carta Veritas ipsa, proibiu a escravização de qualquer povo, índios ou outros, pelos cristãos que os dominassem - até sua condenação formal, em nome do direito natural e revelado, principalmente por Leão XIII. (cf. Encycl. Inscrutabili Dei, 21 de abril de 1878; Lettre In plurimis, 4 de maio de 1888.
Maus actos e circunstâncias
Essas ênfases nos direitos fundamentais da pessoa humana e em sua dignidade não são contrárias ao bem comum. Com efeito, em face dos direitos primordiais da pessoa humana, "nenhum motivo de Estado, nenhum pretexto de bem comum poderia prevalecer [...] porque são o que há de mais precioso no bem comum" (Pio XII, Discurso de 25 de setembro de 1949.), e dizem respeito ao bem mais comum, o da humanidade como um todo. Além disso, destaca-se, conforme Pio XII (10 de abril de 1958), entre os atos proibidos por serem maus (e, portanto, não podendo ser justificados por qualquer fim), existem primeiramente os atos intrinsecamente maus devido à sua natureza, que nenhuma circunstância pode tornar bons (por exemplo, odiar a Deus). No entanto, existem também atos maus devido a circunstâncias essenciais (mesmo que uma mudança nessas circunstâncias possa torná-los bons). Isso ocorre frequentemente no âmbito da justiça: quando a situação jurídica entre duas pessoas muda, um ato que antes era intrinsecamente mau pode não sê-lo mais posteriormente (e vice-versa), devido à mudança recíproca da situação dos sujeitos presentes. Por exemplo: quando os alemães não estão em guerra contra os franceses, é intrinsecamente ilícito para um francês matar um alemão; e, mesmo em estado de guerra, é imoral matar prisioneiros uma vez desarmados (e este último ponto não deixa de se assemelhar ao caso de um detento julgado por crime).
Parte doutrinal e parte contingente
No entanto, na nova posição dos papas recentes, é crucial, no âmbito do direito natural, discernir uma parte doutrinária (é necessário eliminar a pena de morte quando ela não é absolutamente necessária) e uma parte contingente (hoje em dia, a pena de morte não é mais necessária), ligada às circunstâncias. A conclusão abrange ambos os aspectos: "hoje em dia, a pena de morte é inadmissível, independentemente da gravidade do delito cometido pelo condenado". Foi assim que o Papa Francisco se expressou em sua Carta de 20 de março de 2015 ao presidente da comissão internacional contra a pena de morte, parágrafo 4. Lembrando especialmente o discurso pontifical de 23 de outubro de 2014 a cinco grandes associações mundiais especializadas em direito penal, esta carta também esclareceu:
"Como nos ensina São Basílio, Deus não quis punir Caim com homicídio, porque Ele deseja o arrependimento do pecador mais do que a sua morte" (cf. Evangelium vitae, n. 9).
"Em certas ocasiões, é necessário repelir de maneira proporcional uma agressão em curso para evitar que um agressor cause dano, e a necessidade de neutralizá-lo pode envolver sua eliminação; este é o caso da legítima defesa (cf. Evangelium vitae, n. 55). No entanto, [...] quando se aplica a pena de morte, mata-se pessoas não por agressões atuais, mas por danos cometidos no passado. Aplica-se também a pessoas cuja capacidade de infligir prejuízo não é atual, mas que já foram neutralizadas e estão privadas de sua liberdade."
Portanto, não se trata aqui de legítima defesa, como em um ataque terrorista ou agressão militar estrangeira atual. Portanto, não é para tais situações que o Papa Francisco declarou em seu Discurso de 11 de outubro de 2017:
"Deve-se afirmar com veemência que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que fere a dignidade pessoal, independentemente de sua forma operacional. Ao decidir voluntariamente suprimir uma vida humana, sempre sagrada aos olhos do Criador, do qual Deus é, em última análise, o verdadeiro juiz e garantidor, ela é, por si só, contrária ao Evangelho. Jamais, nenhum homem, 'nem mesmo o assassino, perde sua dignidade pessoal' (Carta ao presidente da Comissão Internacional contra a pena de morte, 20 de março de 2015), porque Deus é um Pai que sempre espera o retorno do filho que, consciente de seus erros, pede perdão e começa uma nova vida.
Não há aqui contradição com o ensinamento do passado: a defesa da dignidade da vida humana desde o primeiro instante da concepção até a morte natural sempre foi sustentada, no ensinamento da Igreja, por uma voz coerente e autorizada. O desenvolvimento harmonioso da doutrina, no entanto, exige abandonar posições relacionadas a argumentos que agora aparecem verdadeiramente contrários a uma nova compreensão da verdade cristã."
Além disso, o fato de alguns Estados modernos não utilizarem adequadamente outros meios de que dispõem é uma questão de fato, não de princípio, e não altera a verdade de que não se deve recorrer à pena de morte nos dias de hoje, uma vez que existem meios (que devem ser utilizados) para agir de outra forma.
Mas o magistério atual vai ainda mais longe e aproveita essa conclusão em si acessível à razão natural, acrescentando que esta é, na realidade, uma exigência do Evangelho, que as circunstâncias tornaram agora plenamente perceptível como válida em todos os tempos. "De fato, o Evangelho ajuda a compreender melhor a ordem da criação que o Filho de Deus assumiu, purificou e levou à sua plenitude" (cf. CDF, Carta de 1º de agosto de 2018.)
Resposta do Padre Basile
Alguns leitores expressaram objeções ao meu artigo sobre a pena de morte (La Nef, n°311, p. 10-11). Merece especial consideração a crítica do Sr. Cyrille Dounot (C.D.), autor de um artigo (Catholica, outono de 2018, p. 46-73) que mostra que, até o Papa Francisco, a doutrina comum da Igreja considerava lícita em si a pena de morte. No entanto, tal demonstração é ineficaz para rejeitar a redação do Catecismo da Igreja Católica (CIC) n. 2267, aprovada em 28 de junho de 2018 pelo Papa Francisco. Por que não pode concluir? O espaço disponível nos impõe uma grande brevidade na exposição.
1) Baseia-se em preceitos judiciais do Antigo Testamento, todos abrogados pela Nova Lei. Deus pôde ordenar a pena de morte por um tempo e, em seguida, retirar progressivamente a autorização. Aliás, o Papa Francisco cita o destino de Caim, assassino, mas protegido por Deus (Gn 4, 15). O Novo Testamento confirma, certamente, o direito de repressão aos crimes, mas não a perpétua licitude da pena de morte. Sobre esse assunto, os Padres da Igreja não são unânimes em declarar que se trata de um ensinamento revelado ou definitivo.
2) Quando os teólogos apoiavam a licitude da pena de morte com base no fato de que o criminoso perde sua dignidade, referiam-se à dignidade operativa, moral, e não ontológica, devida à natureza em si, invocada por Francisco.
3) A maioria dos textos pontifícios anteriores que consideravam a pena de morte não é dirigida de forma tão formal a toda a Igreja quanto o CIC em sua alteração de 2018.
4) C.D. negligencia muito o desenvolvimento doutrinário das intervenções cada vez mais enfáticas de João Paulo II (Evangelium vitae, CIC de 1997) e de Bento XVI, considerando que a necessidade de tal pena é quase inexistente nos dias de hoje.
5) Os documentos da Congregação para a Doutrina da Fé expressamente aprovados pelo papa fazem parte do magistério ordinário pontifical (cf. Donum veritatis, 18; a aprovação "in forma specifica" não é necessária), e não de uma ideia pessoal do papa reinante. O magistério ordinário pontifical, mesmo não definitivo, tem mais autoridade do que qualquer autor privado. Para ele também se aplica a palavra de Jesus: "Quem vos ouve, a mim ouve", como afirmou Pio XII em Humani generis.
6) Mesmo sobre fatos contingentes, o magistério pode não apenas ser revestido de autoridade, mas também exercer-se de maneira infalível; pode declarar tal homem verdadeiro papa, tal concílio ecumênico, tal personagem santo, tal livro herético, tal ato concreto imoral, etc. A contingência de um dado não torna o magistério reformável posteriormente (mas não desprovido de autoridade no momento) apenas quando enuncia um elemento válido para esse dado, que poderia não mais valer em outra situação. Ora, esse é precisamente o caso dos ensinamentos anteriores sobre a licitude da pena de morte.
7) A pena tem como objetivo a reparação devida em justiça, bem como a proteção da ordem pública e dos inocentes, mas há muito tempo o magistério enfatiza mais a sua natureza também medicinal. No entanto, a pena de morte não pode ser medicinal. Portanto, não é adequada à noção de pena, assim aperfeiçoada.
8) Não é porque a oposição ao caráter expiatório de toda pena é um erro que a conclusão abolicionista é falsa. De fato, de uma premissa falsa pode decorrer rigorosamente uma conclusão verdadeira, como todos os lógicos sabem.
9) O Novo Testamento e os Padres da Igreja não pedem a abolição da escravidão, mas ensinam os princípios que a inspirarão, embora gradualmente. A breve "Divino amore communiti", do Papa Nicolau V (16 de junho de 1452), ainda autoriza a escravidão dos não-cristãos. Foi Paulo III, em 1537, que acabou por proibir toda escravidão. Mas somente Leão XIII invocará o direito natural e divino contra essa prática.
10) A resposta de C.D., aqui ignorada, continua a negligenciar que, em 10 de abril de 1958, Pio XII ensinou que alguns atos podem ter sua moralidade intrínseca modificada dependendo das circunstâncias. Vamos pegar um exemplo. Suponhamos que, por séculos, o magistério tenha permitido, pelo menos em caso de necessidade, para tratar uma doença X, amputar a perna afetada, e isso, sem qualquer anestesia. Chega um momento em que se descobrem outros métodos de anestesia, até mesmo de medicação. Um papa considera então que chegou o momento de declarar que essa amputação sem os procedimentos modernos de anestesia é um ato bárbaro contrário ao Evangelho e à dignidade humana, que deve ser totalmente eliminado a partir deste dia. Dir-se-á que esse papa condena o magistério anterior? Não, é claro! Bem, da mesma forma, o CIC 2267, em 2018, declara a pena de morte agora inadmissível, à luz do Evangelho e da dignidade humana, sem condenar o magistério anterior. Portanto, a demonstração do Sr. Dounot, embora não desprovida de interesse, torna-se inoperante.
OS ARGUMENTOS DE SANTO AGOSTINHO CONTRA A APLICAÇÃO DA PENA DE MORTE
O problema de tirar do punido a oportunidade de arrependimento:
Não aprovamos de forma alguma os erros dos quais queremos que as pessoas se corrijam; não é porque gostamos do mal que queremos impunidade para ele: mas temos piedade do ser humano ao mesmo tempo em que detestamos o crime; quanto mais nos desagrada o vício, menos desejamos que o vicioso pereça antes de se corrigir. É fácil e simples odiar os maus porque são maus; mas é raro e virtuoso amá-los porque são humanos, de maneira a condenar o erro e elevar a natureza na mesma pessoa; assim, você odiará o mal com mais justiça na medida em que ele tiver manchado essa natureza que você ama. Perseguir o crime e desejar libertar o homem não é se envolver no laço da iniquidade, mas sim caminhar no laço da humanidade. Não há outro lugar além deste mundo onde as pessoas possam se corrigir; pois após esta vida, cada um terá apenas o que tiver acumulado. Portanto, é o amor pelos seres humanos que nos obriga a intervir pelos culpados, com receio de que suas vidas não terminem com um suplício que resultaria em um tormento interminável.
Carta CLIIII a Macedônio
Armados de uma ferocidade ímpia, derramaram o sangue cristão; impeçam, pelo amor de Cristo, que o sangue deles não seja derramado mesmo sob a espada da justiça. Eles tiraram a vida de um ministro da Igreja que foi vítima deles; não matem esses inimigos da Igreja para lhes dar tempo de se arrependerem. Eis como você deve ser um juiz cristão em um assunto da Igreja, quando oramos, advertimos e intercedemos.
Carta CXXXIV a Apringius
Não é a morte deles, mas o retorno religioso deles que desejamos por meio desses juízes e leis terríveis, com receio de que incorram nas penas do julgamento eterno; queremos que se corrijam e não que sejam entregues aos tormentos que merecem. Portanto, pedimos a vocês: quando assumem a causa de uma igreja qualquer, independentemente da gravidade das injustiças que ela sofreu, esqueçam que têm o poder de causar a morte, mas não esqueçam da nossa súplica.
Carta C ao procônsul Donat
Se julgas o próximo como a ti mesmo, reprovas o pecado, não o pecador; e se por acaso te deparas com alguém obstinado que não tema a Deus, é contra essa obstinação que te revoltarás, é nela que buscarás corrigir, que trabalharás para destruir, aniquilar para salvar o culpado, condenando a iniquidade. Aqui, podemos distinguir duas coisas: o homem e o pecador. Deus criou o homem, e o homem fez-se pecador. Morte ao que o homem fez! Libertação ao que Deus fez! Portanto, não chegues ao ponto de tirar a vida do culpado como punição pelo seu crime. Não lhe retires a vida para que ele possa se arrepender; não o faças perecer para que ele possa se corrigir.
Sermão XIII sobre os juízes da terra
É bom não recorrer à pena de morte quando existe outra alternativa:
Se a pena de morte fosse o único meio de deter a fúria dos malfeitores, talvez se resignasse a isso em uma extrema necessidade, embora, no que nos diz respeito, na ausência de um castigo menos severo do que a morte, preferiríamos libertar os culpados a vingar, derramando sangue, as aflições de nossos irmãos. No entanto, existindo outras punições possíveis com o duplo propósito de permanecer fiel à mansidão da Igreja e refrear a audácia dos perversos, por que não adotar a opção mais sábia e não concordar com uma sentença suave, o que é totalmente permitido aos juízes, mesmo quando não se trata de assuntos da Igreja? Portanto, temam conosco o julgamento de Deus, nosso Pai, e que por meio de vocês se reconheça a mansidão de nossa mãe; pois o que vocês fazem, a Igreja faz; vocês são seus filhos e suas obras são para ela. Lutem contra os malfeitores com bondade; eles arrancaram criminosamente os membros de um ser vivo; que, pela sua misericórdia, eles conservem intactos esses membros que foram usados para cometer ações bárbaras, para ocupá-los em alguma obra útil.
Carta CXXXIV a Apringius
Portanto, em nome da fé que vocês têm em Cristo e em nome da misericórdia de Cristo, eu os conjuro a não fazerem isso, nem permitirem. Embora possamos não nos responsabilizar pela morte desses donatistas, já que eles não foram denunciados pelos nossos, mas pelos magistrados encarregados de zelar pela tranquilidade pública, ainda assim, não queremos algo que se assemelhe à lei de talião para vingar os sofrimentos dos servos de Deus. Não é que sejamos contrários ao que deve privar os malfeitores da liberdade do crime, mas queremos que lhes seja concedida a vida e que nenhum mutilamento seja infligido a seus corpos; pareceria suficiente para nós que uma pena legal pusesse fim à sua agitação insensata e os ajudasse a recuperar o bom senso, ou que fossem desviados do mal sendo empregados em algum trabalho útil. Isso também seria uma condenação; mas quem não compreende que um estado em que a audácia criminosa não pode mais se dar livremente e onde se dá tempo ao arrependimento deve ser chamado de um benefício mais do que um tormento?
Carta CXXXIII a Marcelino
Recusá-lo permite-nos cumprir o dever intercessor recomendado pelo Senhor:
Portanto, se é permitido a você amenizar a repreensão eclesiástica por meio da intercessão, por que não seria permitido ao bispo interceder para desviar sua espada? A disciplina eclesiástica pune para que se viva corretamente, sua espada fere para que se pare de viver. Finalmente, o próprio Senhor intercedeu entre os homens para que uma mulher adúltera não fosse apedrejada, e assim nos recomendou o dever da intercessão: o que Ele fez por meio de um santo temor, devemos fazer por meio de nossas súplicas. Pois quem de nós está sem pecado? Quando o Senhor dirigiu essas palavras aos homens que trouxeram a pecadora para ser punida; quando Ele disse que aquele que se considerasse sem pecado atirasse a primeira pedra, a fúria cedeu pelo tremor da consciência; aqueles que exigiam castigo se retiraram e deixaram sozinha à misericórdia do Salvador aquela mulher digna de compaixão. Que a piedade dos cristãos se curve diante desse exemplo que fez dobrar a impiedade dos judeus; que a humanidade dos corações submissos ceda ao que quebrou o orgulho dos perseguidores; que aqueles que confessam fielmente Jesus Cristo se rendam ao que venceu a astúcia hipócrita dos tentadores. Homem virtuoso, perdoe aos maus; seja tanto mais gentil quanto for melhor, e tanto mais humilde pela piedade quanto for mais elevado pelo poder.
Carta CLIIII para Macedônio
Este dever evangélico de misericórdia não contradiz nem a justiça da morte nem os antigos castigos do Antigo Testamento:
Sem dúvida, não é em vão que foram instituídos o poder do rei, o direito da espada da justiça, a função do executor, as armas do soldado, as regras da autoridade e até mesmo a severidade de um bom pai. Todas essas coisas têm suas medidas, suas causas, suas razões, seus benefícios; elas impõem um temor que contém os malfeitores e assegura a paz dos bons. [...] Mas as intercessões dos bispos não são contrárias a essa ordem estabelecida no mundo; pelo contrário, não haveria razão alguma para interceder se essas coisas não existissem. Os benefícios da intercessão e do perdão têm tanto mais valor quanto o castigo era mais merecido. Até onde posso julgar, as severidades narradas no Antigo Testamento tinham o único propósito de mostrar a justiça das penas estabelecidas contra os malfeitores; e a indulgência da nova aliança nos convida a perdoar, para que a clemência se torne, ou um meio de salvação mesmo para nós que pecamos, ou uma recomendação de mansidão, para que, por meio daqueles que perdoam, a verdade inspire não apenas o medo, mas também o amor.
Carta CLIIII a Macedónio
Estou certo de que os culpados não terão que sofrer os mesmos tratamentos que confessam ter infligido aos outros; mas temo que você possa condenar à morte aqueles ou aqueles que foram convencidos de homicídio: cristão, peço ao juiz que não o faça; bispo, advirto o cristão disso. O Apóstolo diz daqueles que são como você que não é em vão que você carrega a espada, que você é ministro de Deus, encarregado de sua vingança contra os homens que agem mal (Rom. XIII, 4); mas uma coisa é a causa de uma província, outra coisa é a causa da Igreja; o governo de uma exige severidade, o governo da outra deve ser inseparável da mansidão. Se eu estivesse diante de um juiz que não fosse cristão, agiria de maneira diferente; no entanto, não abandonaria a causa da Igreja, e, tanto quanto ele se dignasse ouvir-me, insistiria para que os sofrimentos dos servos católicos de Deus, que devem ser exemplos de paciência, não fossem manchados pelo derramamento do sangue de seus inimigos; se o juiz se recusasse a me ouvir, eu o suspeitaria de resistir por uma inspiração hostil.
Carta CXXXIV a Apringius
Esta pena não homenageia a clemência católica e desonra os verdadeiros mártires:
Entre eles [os donatistas], há aqueles que, segundo sua própria declaração, mataram um de nossos padres, cegaram e mutilaram outro de nossos irmãos; e há aqueles que não ousaram negar que esses crimes estavam ao seu conhecimento, embora afirmassem condená-los; estes rejeitam a paz católica sob o pretexto de não se contaminarem com as iniquidades alheias, e permanecem em um cisma sacrílego no meio de uma multidão de criminosos; finalmente, há aqueles que chegaram a dizer que permaneceriam no cisma, mesmo que lhes fosse demonstrada a verdade católica e a mentira dos donatistas. [...] Quanto à pena que deve seguir a confissão de tais crimes, peço, apesar de sua enormidade, que não seja a morte; peço isso, quer para a nossa consciência, quer para que se preste homenagem à brandura católica. A vantagem que tiraremos de tais confissões será mostrar a doçura que a Igreja católica reserva para seus inimigos mais obstinados. Diante de atrocidades semelhantes, qualquer pena que não seja o derramamento de sangue será considerada bastante suave. Alguns dos nossos, indignados com tamanhas crueldades, nos acusarão de fraqueza e negligência; mas depois desses primeiros movimentos, que são o efeito comum de crimes recentes, entenderão o que há de excelente em nossa conduta misericordiosa, e então leremos e mostraremos mais voluntariamente esses mesmos atos, ó meu ilustre Senhor, muito querido e muito desejado filho! [...] Se o procônsul não atender às minhas cartas, que ele pelo menos ordene que os culpados sejam mantidos na prisão, e trabalharemos para obter o perdão deles pela clemência imperial: não é permitido que o derramamento de sangue de nossos inimigos desonre os sofrimentos dos servos de Deus, que devem ser uma glória para a Igreja.
Carta CXXXIX a Marcelino
A misericórdia não torna o punido culpado de reincidência ou de não arrependimento:
Nossas intercessões em favor de um criminoso às vezes têm consequências que não gostaríamos. Pode acontecer que, levado pela paixão e insensível à indulgência, aquele que salvamos redobre sua audácia cruel devido à impunidade e que vários pereçam pelas mãos daquele a quem tiramos da morte; pode acontecer ainda que o exemplo de um culpado perdoado e voltado para uma vida melhor desperte esperanças de impunidade e faça perecer outros que se entreguem a ações semelhantes ou piores. Não creio que nossas intercessões sejam responsáveis por esses males; devemos ser creditados, antes, pelo bem que buscamos, ou seja, a mansuetude que faça amar a palavra da verdade, e o desejo de que aqueles que são salvos de uma morte temporal vivam de maneira a não cair na morte eterna, para a qual não há mais libertador.
Carta CLIIII para Macedônio
SOBRE A QUEIMA DE HEREGES
Deveria um católico hoje acreditar que é bom queimar hereges? Isto é o que uma interpretação da Bula “Exsurge Domine” do Papa Leão X em 1520 nos pode fazer compreender. Esta bula listava as proposições condenadas por Martinho Lutero, incluindo uma, a de número 33, que era “Queimar os hereges, é contra a vontade do Espírito”. Será um católico, portanto, forçado a aprovar o retorno da fogueira para os hereges neste momento e a acreditar que a coisa é boa? Compartilhamos aqui comentários que mostram que ele não é obrigado a interpretá-la dessa forma, e que afirmar que a proposição é herética é uma opinião teológica questionável.
Padre Brian Harrison, em "Tortura e castigo corporal como um problema na teologia católica", Living Tradition , 119, setembro de 2005
A condenação do Papa Leão X à proposição [...] é claramente uma censura doutrinária. No entanto, qual tipo de status doutrinário o Papa quis atribuir a essa condenação não está claro. Não há uma nota teológica específica anexada à proposição. Como qualquer uma das outras 41 censuradas na Bula, ela poderia ser designada a um "nível de iniquidade" tão grave quanto "herética", tão leve quanto "ofensiva aos ouvidos piedosos" ou "sedutora para os simples de espírito", ou entre os dois ("escandalosa" ou "falsa"). No final do documento, o Papa faz apenas uma declaração geral de que todas as proposições citadas merecem uma ou mais dessas censuras. No entanto, ele acrescenta que, em todos os casos, todas são, de alguma forma, "contrárias à verdade Católica" (veritati catholicae obviantes) e, portanto, são "condenadas", "reprovadas" e "absolutamente rejeitadas" [". . . damnamus, reprobamus, atque omnino reicimus". Cf. DZ 1492.] Agora, a condenação papal de uma proposição que poderia - pelo que nos foi dito - não ser pior do que "escandalosa", "ofensiva aos ouvidos piedosos" ou "sedutora para os simples de espírito" certamente não pode ser considerada uma definição ex cathedra. Todas essas três censuras mais leves implicam claramente um tipo de julgamento que poderia ser reformável; enquanto as definições infalíveis, evidentemente, não são, por sua própria natureza, reformáveis. (Admitindo que não é certamente falsa, uma proposição dada que, no entanto, é propensa a "escandalizar", "ofender" ou "seduzir" os fiéis em determinadas circunstâncias culturais/históricas pode não ser tão prejudicial em outras circunstâncias). Assim, especialmente à luz do fato de que queimar hereges (ou, de fato, executá-los por qualquer meio) não fazia absolutamente parte da prática ou tradição Católica durante o primeiro milênio da história da igreja, e era, de fato, explicitamente repudiada por concílios e papas até o século XI (cf. B2 e B3 citado [no artigo]), não acredito que seja incumbência dos apologistas católicos do terceiro milênio lutar para tentar defender essa decisão não infalível de Leão X. [note 51:] Não estou afirmando que defesas possíveis da declaração do Papa Leão X nunca deveriam ser tentadas por apologistas que buscam explorar o assunto. Se a proposição de Lutero implicasse - o que provavelmente não era o caso -, que em termos de justiça estrita, nenhum crime possível mereceria um destino tão ruim quanto ser queimado vivo, ou seja, infligir tal pena era intrinsecamente mal, Leão teria razoavelmente respondido que foi o Espírito Santo quem inspirou o livro do Levítico, que exige precisamente essa punição para certos crimes. Se o significado fosse, ao invés disso, que a heresia não deveria ser tratada como um crime capital, então pelo menos deveríamos lembrar que em um tempo a heresia era uma ameaça real à ordem pública justa, devido à séria ameaça que ela representava à liberdade da Igreja (não apenas a sua dominação sócio-política). Pois os hereges não eram mais tolerantes que os católicos naquele período, e deixaram claro verbalmente e por meio de atos sua determinação de perseguir a Igreja assim que estivessem no poder. Além disso, a proposição condenada poderia, de fato, ter sido verdadeiramente "sedutora para os simples de espírito" no sentido de que, conforme apresentadas, as palavras "contrárias à vontade do Espírito" poderiam ser facilmente associadas ao que o Evangelho descreve como o pior dos pecados: o pecado imperdoável "contra o Espírito Santo" (cf. Marcos 3:28-29). E queimar hereges, tão oposto ao espírito que possa ser, senão à letra, da Lei de Cristo, certamente não o é. Somente poderíamos especular sobre o que o magistério teria dito, se tivesse dito alguma coisa, se Lutero tivesse escolhido formular sua oposição ao fato de queimar hereges em termos mais circunspectos: por exemplo, dizendo que um tratamento tão extremo, mesmo para os piores pecadores, é muito difícil de conciliar com o espírito de paciência e misericórdia exigido na Nova Lei de Cristo, que repreendia explicitamente o zelo dos discípulos desejando que os infiéis fossem queimados vivos [Cf. Lucas 9:52-56, e B3 da Parte I do artigo]; e que tal punição deveria, então, ser abolida em todos os casos pelos governos cristãos. Pelo menos é reconfortante para o católico moderno notar que o magistério nunca condenou de forma alguma essa última posição mais nuanceada, que, de fato, foi efetivamente adotada (embora tardiamente!) pelo Trono de Pedro, quando o Papa Pio VII finalmente proibiu a tortura em qualquer país Católico. [Cf. B7 do artigo] (Nessa época, evidentemente, ninguém tinha sido legalmente queimado na fogueira em um país católico por pelo menos um século).
Cardeal Charles Journet , em A Igreja do Verbo Encarnado: A Hierarquia Apostólica , Edições Saint-Augustin, pp.577-579
Na 80ª conclusão de suas Resolutiones disputationum de indulgentiarum virtute, enviadas em 1518 a Leão X, Lutero protesta contra a interpretação que atribui ao sumo pontífice dois gládios, um espiritual e outro material. Para ele, ambos os gládios representam o gládio do Espírito e o Evangelho. Nos dias de hoje, acrescenta ele, o que desejamos "não é destruir as heresias ou os erros, mas queimar os hereges e os extraviados, nos deixando conduzir menos pelo conselho de Cipião do que pelo de Catão, que queria destruir Cartago. Agimos até mesmo contra a vontade do Espírito, que escreve que os jebuseus e cananeus foram deixados na terra da promessa, para que os filhos de Israel pudessem aprender a fazer guerra e manter o hábito da guerra: por meio do qual, se São Jerônimo não me engana, são prefiguradas as guerras dos hereges. De qualquer forma, o apóstolo é digno de fé quando diz: 'É necessário que haja heresias.' Mas nós dizemos, ao contrário, que é preciso queimar os hereges. Como se fosse necessário arrancar a raiz ao mesmo tempo que os frutos, o joio ao mesmo tempo que o trigo [Op. lat., edição de Jena, 1563, vol. I, p. 114]." Essas reflexões foram condensadas na proposição condenada: "É contra a vontade do Espírito que são queimados os hereges." Primeiramente, pode-se observar que Lutero não pretendia negar nem que o Espírito pune no fogo do inferno os réprobos, nem que os verdadeiros hereges são dignos do inferno; de modo que, em um sentido (que certamente não está em questão aqui), a proposição de Lutero pareceria falsa mesmo aos seus próprios olhos. Pode-se observar também que, depois de começar dizendo que era necessário vencer os hereges pelas Escrituras, não pelo fogo, Lutero logo mudou de ideia para afirmar (e com ele a teologia protestante do século XVI) que, se resistissem às Escrituras, os hereges - eram os anabatistas - deveriam ser mortos, mesmo quando não fossem seditiosos; e o direito saxônico previa contra eles a pena de fogo, precedida de tortura para arrancar-lhes a denúncia de seus cúmplices. [Hartmann GRISAR, S.J., Luther, Freiburg i. B., 1925, vol. III, pp. 729-748] Mas vamos direto ao cerne do nosso assunto. Contra Lutero, que afirmava que não se podia, naquela época, aplicar a pena de morte aos hereges sem contradizer o Espírito Santo, Leão X afirmava que se tinha, naquela época, o direito de aplicar a pena de morte aos hereges. "Se tinha", quem era? Não era a Igreja. Era o Estado cristão. A Igreja julgava a heresia e lembrava ao Estado de seus deveres temporais [A resposta de Lutero à condenação de Leão X realmente estabelece apenas uma coisa, que a Igreja como tal não tem que recorrer à pena de morte. Assertio omnium articulorum per bullam Leonis X novissimam damnatorum, dez. 1520, Opera, Iena, 1566, vol. II, p. 309 b.] As teses da bula Exsurge foram condenadas pelo papa "respectivamente como heréticas, ou escandalosas, ou falsas, ou próprias para chocar os ouvidos piedosos e seduzir o espírito dos simples" [Bullarium romanum, Turim, 1860, vol. V, p. 752]. Que nota teológica merecia a tese que alegava que os hereges não podiam, naquela época, ser punidos com a morte? Certamente, uma nota inferior à heresia. Assim como a tese que a segue imediatamente: "Lutar contra os turcos é lutar contra Deus punindo por meio deles nossas iniquidades" [Denz., n°774], tese que também seria, logo em seguida, ruidosamente renegada por seu autor. O recurso ao braço secular para defender a cristandade contra seus inimigos de dentro e de fora, contra os hereges e os turcos, parecia naquela época uma medida de prudência que não podia ser contestada sem temeridade.
Scott Eric Alt , “Um leitor pergunta sobre Exsurge Domine e queima de hereges”, To Give a Defense , 31 de agosto de 2019
A resposta curta é que Leão X estaria errado se tivesse escrito o "Exsurge Domine" em 2020. No entanto, ele o escreveu em 1520, e várias coisas importantes eram diferentes naquele ano. Mas precisamos dar alguns passos para trás primeiro. [...] O Papa lista quarenta e uma "erros", mas faz questão de especificar que esses erros se enquadram em categorias diferentes. "Alguns deles", ele diz, "já foram condenados por Concílios e Constituições de nossos predecessores e contêm expressamente a heresia dos gregos e boêmios. Outros erros são heréticos, falsos, escandalosos ou ofensivos a ouvidos piedosos, como sedutores para os simples de espírito, provenientes de falsos representantes da fé que, em sua curiosidade orgulhosa, aspiram à glória do mundo e, contrariando o ensinamento do Apóstolo, querem ser mais sábios do que deveriam ser." Em outras palavras, tudo o que é dito nesta lista de quarenta e uma é necessariamente falso. Alguns são apenas "escandalosos" ou "ofensivos" ou "sedutores". Leão X nunca diz qual dessas quarenta e uma se enquadra em quais categorias. E alguns refletem uma "curiosidade orgulhosa" e o desejo de ser "mais sábio do que deveriam ser". [...] Uma escola de pensamento diz que Leão não quis dizer de jeito nenhum que queimar hereges era "a vontade do Espírito"; mas apenas afirmar que a vontade do Espírito sobre esse ponto não poderia ser conhecida. Ele condenava a ideia de que Lutero conhecia a vontade do Espírito de alguma forma. Lutero, em outras palavras, tinha uma "curiosidade orgulhosa" e um desejo de ser "mais sábio do que deveria ser" sobre esse ponto. Isso é totalmente possível. Leão X pode ter tido em mente passagens das Escrituras em que Deus pede a pena de morte contra aqueles que propagam falsas religiões [Êxodo 22:18; Deuteronômio 13:6; Deuteronômio 18:20]. Diante desses exemplos de circunstâncias em que Deus parece desejar a morte de hereges, como Lutero poderia saber que o Espírito não o desejava em 1520? Leão X pode ter pensado algo semelhante. É importante lembrar nessas discussões que a heresia era, em algum momento, um assunto muito mais sério para a comunidade e o estado do que é hoje. O professor de história Thomas Madden expressa isso bem ao escrever: "O mundo medieval não era o mundo moderno. Para os povos medievais, a religião não era algo que alguém fazia na igreja. Era a deles ciência, filosofia, política, identidade e esperança de salvação. Não é uma preferência pessoal, mas uma verdade eterna e universal. A heresia, portanto, atingia o cerne dessa verdade. Condenava o herege, colocava em perigo seu entorno e rasgava o tecido comunitário. ... A prática moderna da tolerância religiosa universal é em si nova e exclusivamente ocidental." Isso significa que não podemos ler o "Exsurge Domine" de forma anacrônica, com nossas próprias pressuposições sobre liberdade intelectual e liberdade de consciência. Em uma época anterior à separação entre Igreja e Estado, a heresia não era apenas uma falsa doutrina; era uma traição. E, pela capacidade de ganhar convertidos, os "hereges dividiam os povos, causando tumulto e rebelião". Era uma questão de segurança do Estado. Devido à Reforma Protestante, nações inteiras abandonaram o Catolicismo, demonstrando o poder que a heresia tinha. Mesmo em tempos modernos, pense no distúrbio político entre a Irlanda do Norte e a Irlanda do Sul em torno da divisão entre protestantes e católicos. Ao colocar os hereges à morte, o Estado agia para preservar ou mitigar a desordem civil. Além disso, a heresia poderia condenar você. E se um herege ganhasse muitos convertidos, essas almas também poderiam ser condenadas. Era a lógica da época. Da mesma forma que o Estado usa a pena de morte para proteger a vida inocente, o Estado usava a pena de morte para proteger a vida eterna daqueles que poderiam sucumbir às persuasões poderosas dos hereges. Com base em que Martinho Lutero pensava que isso não era a vontade do Espírito, um veneno desse tipo deveria ser erradicado da sociedade? [...] Os tempos mudam. "Donum Veritatis" - do qual falei várias vezes desde 2017 - fala sobre esse tipo de "deficiências" que podem se infiltrar em documentos magisteriais no "domínio das intervenções de ordem prudente" [...]: "O Magistério, com o objetivo de servir da melhor forma possível o Povo de Deus, e especialmente para alertá-lo contra opiniões perigosas que podem levar ao erro, pode intervir em questões debatidas, nas quais estão envolvidos, ao lado de princípios firmes, elementos conjecturais e contingentes. E muitas vezes é apenas com o tempo que se torna possível fazer a distinção entre o necessário e o contingente." Em primeiro lugar, a CDF fala de opiniões perigosas que poderiam levar ao erro. Leão X talvez não tenha pensado tanto que o pensamento de Lutero sobre queimar hereges fosse um erro, mas que tinha o potencial de levar ao erro. Por exemplo, se não fosse a vontade do Espírito que os hereges fossem queimados, então talvez a Verdade não seja tão séria quanto as pessoas pensam, e opiniões religiosas contrárias podem ser deixadas livres em todo o mundo (um pensamento muito mais alarmante em 1520 do que em 2020). Em segundo lugar, a ideia de que queimar hereges poderia ser a vontade do Espírito é "contingente" aos fatos de que, na época de Martinho Lutero, quando a heresia era universalmente
Jimmy Akin , “Identificando Declarações Infalíveis”, The Rock , 12(7), 1º de setembro de 2001
Há várias maneiras de resolver esse suposto dilema. Poderíamos afirmar que, em alguns casos, é a vontade do Espírito que os hereges sejam mortos. Afinal, Deus não solicitou em algumas ocasiões o uso da pena de morte para certas ofensas relacionadas às falsas religiões (Ex. 22:18, 20; Deut. 13:5, 8–10, 15, 18:20)? Outra abordagem poderia ser destacar que, quando a Igreja censura uma proposição, significa que a Igreja encontra algo problemático nela. No entanto, como a proposição é formulada nas palavras do acusado, ela muitas vezes está mal formulada, e, portanto, não podemos assumir que a posição da Igreja seja o oposto da proposição ofensiva. Por exemplo, se a Igreja escolhesse condenar a proposição "o céu é branco", não poderíamos deduzir que a Igreja adere à proposição de que "o céu é preto". Vamos aplicar esse raciocínio ao nosso caso. Se a Igreja condenasse a proposição de que é contrário à vontade do Espírito matar hereges, isso não significa que a Igreja ensina que é sua vontade fazê-lo. Existe a possibilidade de que a aplicação da pena de morte em tais circunstâncias seja algo que o Espírito desejava em um determinado momento, mas não deseja mais hoje. Há também a possibilidade de que Ele deseje isso no caso de algumas ofensas à fé, mas não em outras, ou que Ele deseje isso no caso de algumas pessoas e não em outras, ou que Ele não deseje nem aprove. A maneira mais fundamental de resolver esse suposto dilema é examinar se Exsurge Domine envolve o exercício da infalibilidade do papa. A resposta é não. [Pastor Aeternus] explica que o papa fala ex cathedra "quando, exercendo sua função de pastor e doutor de todos os cristãos, ele define, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, que uma doutrina sobre a fé ou os costumes deve ser sustentada por toda a Igreja". A palavra importante é "define". Definir algo não é a mesma coisa que dizer, ensinar, declarar ou condenar. O significado do termo é explicado em uma relatio sobre Pastor Aeternus 4. (Uma relatio é uma interpretação oficial do texto apresentada aos bispos do concílio por uma pessoa chamada relator, para que os bispos saibam o significado oficial do texto pelo qual estão votando. Assim, o que é dito na relatio é importante para resolver questões sobre o significado do texto conciliar). Em 16 de julho de 1870, Vincent Gasser, o relator para Pastor Aeternus 4, deu uma relatio que explicava que "a palavra 'definiri' significa que o papa pronunciou diretamente e conclusivamente uma sentença sobre uma doutrina que diz respeito à fé e aos costumes, e o fez de tal maneira que cada fiel pode ter certeza do espírito da Sé Apostólica, do espírito do Pontífice Romano; de tal maneira, assim, que alguém saiba com certeza se tal ou qual doutrina é considerada herética, próxima da heresia, certa ou errônea, etc., pelo Pontífice Romano" (Gasser & O'Connor, The Gift of Infallibility [Boston: St. Paul Editions, 1986, 74 n.]. […] Se o fiel não pode saber, a partir do que o papa diz, que uma proposição específica deve ser considerada em um sentido específico, então o papa não definiu a questão para a Igreja Universal e, portanto, não falou infalivelmente. Ao longo da história da Igreja, houve muitas ocasiões em que [ela] censurou uma lista de proposições encontradas nos escritos de uma pessoa. Às vezes, isso é feito condenando as proposições uma por uma, "as qualificações específicas atribuídas a cada uma individualmente (in individuo). [No entanto,] no caso de... Lutero... a uma série inteira de proposições uma série de censuras é atribuída de forma geral (in globo).... a cada uma das proposições, portanto, se aplica uma, ou várias, ou todas as censuras utilizadas - a tarefa de atribuir cada censura a cada proposição sendo deixada aos teólogos" (Enciclopédia Católica, ed. de 1907, s.v. "Theological Censures"). Se examinarmos a condenação das proposições de Lutero em Exsurge Domine, fica claro que elas são condenadas in globo em vez de in individuo. O Papa Leão X escreveu: "condenamos, reprovamos e rejeitamos completamente cada uma destas teses ou erros como [1] heréticos ou [2] escandalosos, ou [3] falsos, ou [4] ofensivos às orelhas piedosas ou [5] sedutores para os simples de espírito e [6] contrários à verdade Católica." O Pontífice lista seis censuras diferentes, mas não nos diz qual se aplica a cada uma das quarenta e uma proposições. Ao examinar o texto em latim da sentença, a ambiguidade é ainda mais evidente. As diversas censuras nomeadas pelo papa - de "herético" a "ofensivo às orelhas piedosas" - são todas unidas pela conjunção aut. No latim eclesiástico, a palavra aut tende a ter o sentido de um "ou" exclusivo - ou seja, é isto ou aquilo, não ambos. Isso estabelece o fato de que não podemos determinar o tipo de censura aplicada a cada proposição individual. Não podemos nem mesmo deduzir que o espírito do pontífice era que todas as proposições eram falsas. As censuras "heréticas" e "falsas" implicam ambas o erro, mas "escandaloso", "ofensivo às orelhas piedosas" ou "sedutor para os simples de espírito" não o fazem. Escandaloso significa "propenso a causar escândalo", mas isso não significa automaticamente falso. Às vezes, coisas verdadeiras levam ao escândalo
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ResponderExcluirExcelente artigo! Além do mais, deve-se ser considerado que a instituição da pena de morte em si mesma na verdade antecipa sua eventual abolição. No dilúvio, Deus está Ele próprio aplicando a pena capital aos homens para limpar a face da terra do mal humano. Então, em Gênesis 9, Ele delega essa tarefa aos homens. No entanto, antes de fazer isso, Ele faz uma promessa: “Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração humano é má desde a sua juventude, nem ferirei mais todo ser vivo como fiz.” (Gên. 8:21) Portanto, aqui temos o princípio de que, embora os homens mereçam receber a penalidade x, essa misericórdia pode ser demonstrada aos homens devido à sua fraqueza e de uma perspectiva mais elevada. Assim, imitamos a Deus ao não ferir os homens quando a situação nos permite fazê-lo sem os efeitos desastrosos que teriam ocorrido em épocas anteriores.
ResponderExcluirAlém disso, aqueles que criticam a Dignitas Infinita porque ela afirma que a pena de morte é sempre uma violação da dignidade humana, afirmando que isso supostamente contradiz o facto de a Igreja ter tolerado esta prática no passado, estão errados porque pode haver casos em que a violação da “dignidade ontológica” de algo é justificada, por exemplo, autodefesa, guerra defensiva (o documento parece pessimista sobre a possibilidade de uma guerra ofensiva justa), etc., vemos até o documento estendendo a dignidade ontológica às criaturas, o que na verdade destaca muito bem o princípio. Agora... pode-se argumentar que o Papa Francisco, o Cardeal Fernandez, etc., acreditam que não há casos justificáveis em que se possa violar esta dignidade através da pena de morte, mas, isso seria simplesmente um erro sobre a questão da aplicação de doutrina em circunstâncias particulares (assim como se poderia dizer que o Papa Francisco está certo sobre o respeito pelo meio ambiente, mas errado nas aplicações políticas que faz no ambientalismo), e não um erro de ensino. Lembrem-se:
Princípio + Circunstância = Lei
^ Quando julgamos um ensinamento “errado”, não olhamos para a “lei”, mas para o “princípio”.
Além disso, aqueles que a criticam por afirmar que o ser humano tem dignidade infinita, afirmando que só Deus a possui, estão errados porque se fala do infinito em dois sentidos, absoluto e relativo. Seja como aquilo que é absolutamente infinito, isto é, não limitado em nenhuma ordem, e também como aquilo que não é limitado em determinada ordem, neste sentido, a dignidade humana é infinita, ou seja, não é limitada em sua ordem, ou seja, transcende todos os aspectos da existência, quando a mesma afirma que a dignidade humana é infinita, ela claramente está falando de um infinito relativo ao invés de um infinito absoluto:
“Esta dignidade de cada ser humano pode ser entendida como “infinita” (dignitas infinitas), como afirmou o Papa São João Paulo II num encontro para pessoas que vivem com diversas limitações ou deficiências. Ele disse que é para mostrar como a dignidade humana transcende todas as aparências externas e aspectos específicos da vida das pessoas (...) Cada pessoa humana possui uma dignidade infinita, inalienavelmente fundamentada em seu próprio ser, que prevalece em e além de cada circunstância, estado ou situação que a pessoa possa encontrar.”
Portanto, o Papa Francisco acabou por ser vindicado completamente, pois ele falou muito claramente contra o aborto, a maternidade sub-rogada, a eutanásia e o suicídio assistido, a teoria de gênero (gender) e a mudança de sexo, temas contra os quais falou com bastante veemência antes e criticou muito, o que demonstra que a caricatura de um Papa Francisco liberal é algo imaginário, um delírio, e não corresponde verdadeiramente ao Papa Francisco. Vivat Christus Rex! Ave Maria Immaculata! Salve Roma Aeterna! Vivat Sanctus Pater, Papa Franciscus, oremus pro nostro Summo Pontifice! AMDG.